Ciência e arte de Cesar Lattes

Bruno Ribeiro da Agência Anhangüera - bruno@rac.com.br

Físico gostava de música caipira, mas foi homenageado por Cartola e Carlos Cachaça com o samba Ciência e Arte

O físico Cesar Lattes, morto em Campinas no último 8, esteve próximo de ganhar o prêmio Nobel por duas vezes, mas não ganhou. Teria dito, porém, numa antiga entrevista, que o maior prêmio que poderia ter ganho não era o Nobel, mas o samba-enredo que a Estação Primeira de Mangueira dedicou-lhe no Carnaval de 1947. Ciência e Arte, parceria de Cartola e Carlos Cachaça, ficou em segundo lugar na avenida – num tempo em que a Portela era imbatível –, mas, ao contrário do samba vencedor, teve uma marcante regravação e escapou do esquecimento.

Em 1997, Gilberto Gil gravou Ciência e Arte no álbum Quanta, premiado com o Grammy na categoria World Music. Cesar Lattes, naquela ocasião, escreveu a apresentação do disco e fez a “correção” das letras – a maioria delas cantava, sem muita precisão, as maravilhas da física moderna.

Em uma entrevista concedida à pesquisadora Ana Maria Ribeiro, publicada em O Estado de Minas, Cesar Lattes respondeu uma pergunta sobre as possibilidades de convivência entre ciência e arte: “É difícil. Camões pediu ajuda do engenho e da arte para escrever os Lusíadas, não da ciência. Que eu saiba, a arte embeleza a alma enquanto Pantagruel e Gargantua – em carta quando foi estudar na Sorbonne – disse que ‘a Ciência sem consciência não é outra coisa que não a ruína da alma’. Eu acho que o objeto da arte, quando dado por terminado por seu criador, é definitivo. Porém, todos os resultados científicos são provisórios. Já escrevi para o Gilberto Gil (na apresentação do CD Quanta) que a ciência é a irmã caçula da arte; talvez bastarda”.

Em outra entrevista, esta mais recente, fala ao repórter Eduardo Geraque, da Gazeta Mercantil, sobre suas predileções musicais: “Não gosto de bossa nova. Gosto do Gil e de alguns outros. Ouço bastante música caipira e moda de viola. Ontem, coloquei um disco do Antônio Carlos Brasileiro na vitrola, mas era o Tom Jobim que estava lá. Tirei o disco na hora”.

Não é comum que cientistas saiam por aí merecendo homenagens de músicos populares. Ainda mais no Brasil, um País onde a física padece de desconhecimento e falta de incentivos. A homenagem que a Mangueira prestou a Cesar Lattes teve sua razão de ser – e ela não partiu, espontaneamente, da vontade de Cartola e Cachaça. Após o físico brasileiro descobrir e provar a existência da partícula méson pi, seu nome correu o mundo. No Brasil, o ditador Getúlio Vargas soube apropriar-se desse prestígio usando-o a seu favor no discurso ufanista que, desde 1933, passou a pautar as temáticas do carnaval carioca.

A oficialização do carnaval pelo Estado é acusada pelos estudiosos de ser responsável pelo fim da visão crítica e satírica que sempre foi um dos ângulos pitorescos da festa carioca. A idéia de controlar os desfiles partiu do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda) de Vargas, que passou a subvencionar ou premiar as escolas de samba que desfilassem com enredos de cunho nacionalista e condizentes com sua ideologia de ordem e trabalho. Exaltar heróis, políticos e personalidades imediatamente identificadas com a Pátria passou a ser um imperativo no Carnaval.

É provável que a Mangueira tenha sofrido, ainda que inconscientemente, a influência da mão invisível do apadrinhamento estatal. De toda maneira, o samba tornou-se um sucesso. Para além das intenções, ficou a beleza da melodia e a simplicidade delicada da letra. Cartola e Carlos Cachaça eram gênios, capazes de encontrar soluções inusitadas para as rimas, como na passagem em que casam “pobres vates” com “Cesar Lattes”.

Poucas vezes o físico falaria sobre a homenagem que ganhou dos sambistas, mas consta que teria se emocionado intensamente, em 1949, ao escutar seu nome na letra cantarolada por um vendedor de peixes, que sequer sabia o que eram prótons e nêutrons.

Ciência e Arte
(Cartola e Carlos Cachaça)

“Tu és meu Brasil em toda parte
Quer na ciência ou na arte
Portentoso e altaneiro
Os homens que escreveram tua história
Conquistaram tuas glórias
Epopéias triunfais
Quero neste pobre enredo
Reviver glorificando os homens teus
Levá-los ao panteon dos grandes imortais
Pois merecem muito mais
Não querendo levá-los ao cume da altura
Cientistas tu tens e tens cultura
E neste rude poema destes pobres vates
Há sábios como Pedro Américo e Cesar Lattes”

A partícula que virou samba

Na ocasião da morte de Cartola, o jornalista e compositor Hermínio Bello de Carvalho afirmou: “Pra mim, Cartola foi tão grande quanto Carlos Drummond, Oscar Niemeyer, Candido Portinari ou Cesar Lattes”. A humildade e a simplicidade que sempre marcaram a personalidade e a vida do físico fizeram dele um homem profundamente ligado ao Brasil. Para ele nunca foi demérito ser colocado, em grau de importância, ao lado de um artista popular.

Cesare Mansueto Giulio Lattes nasceu em Curitiba, em 11 de julho de 1924. Mas foi em 1947, aos 23 anos de idade, que seu nome se inscreveria, para sempre, na história da física mundial. A partícula que influenciaria o samba da Mangueira – o méson pi – já tinha sido prevista pelo cientista japonês Hideki Yukawa (1907-1981), mas jamais havia tido sua existência comprovada. Até o aparecimento de Cesar Lattes.

Na metade da década de 1940, o jovem brasileiro trabalhava no quarto andar de um imponente prédio da Universidade de Bristol, na Inglaterra, na equipe liderada pelo físico Cecil Powell (1903-1969). Chegou até lá graças à bolsa oferecida por uma empresa de cigarros, pela qual teria eterna gratidão: “Comecei a fumar aos 22 anos, quando ganhei a bolsa. Achei que não ficava bem receber dinheiro deles e não ser fumante”, declarou, para o repórter Eduardo Geraque. O investimento não foi em vão: 1947 seria um ano inesquecível para a física.

A equipe de Powell tentava capturar os estilhaços produzidos, a dezenas de quilômetros de altitude, pelo choque de partículas ultraenergéticas – conhecidos como raios cósmicos – contra núcleos atômicos que formam o ar. A esperança dos físicos envolvidos era que um fragmento ainda desconhecido da matéria fosse capturado ao imprimir sua trajetória em chapas fotográficas especiais.

O sucesso das pesquisas deveu-se graças ao “jeitinho brasileiro” do jovem Lattes. Em Bristol, ele pediu que o fabricante das chapas fotográficas, a Kodak, colocasse um pouco mais do elemento químico boro na composição do material e pediu para que o amigo Giuseppe Occhianlini deixasse as chapas expostas em Pic-du-Midi (França), onde ele ia esquiar.

Ao revelar as chapas, em Bristol, Lattes descobriu as primeiras evidências de que as regiões altas favoreciam a captura de bilhões de partículas causadas pelo impacto de raios cósmicos contra núcleos atômicos. Pediu permissão para expor as chapas fotográficas em outro pico, o monte Chacaltaya, nos Andes bolivianos, a mais de 2, 5 mil metros de altitude. De lá, o físico foi para o Rio de Janeiro, onde revelou as emulsões e confirmou definitivamente a existência dos píons. E, na seqüência escreveu um artigo, publicado na Inglaterra, que teve grande impacto internacional.

Da noite para o dia o Brasil se tornava não só o país do samba e do carnaval, mas também da física. Com apenas 23 anos, Cesar Lattes representava a esperança de cientistas, políticos e militares brasileiros. Eles sonhavam que o físico poderia ajudar o Brasil a produzir energia nuclear. Como se isto fosse simples e barato. Já naquela época, o domínio dessa tecnologia estava em mãos britânicas e norte-americanas.

Pouco antes de morrer e ser sepultado, em Campinas – cidade que escolheu para morar –, Cesar Lattes deu a última entrevista de sua vida, para a revista Ciência & Tecnologia. Nela, o físico que ajudou a fundar a Unicamp nega que o Nobel tenha sido uma incômoda lacuna em sua carreira, mas alfineta: “São os ingleses que formam a comissão”. O prêmio, pela descoberta do méson-pi, acabou indo para Cecil Powell, o chefe da equipe de Bristol. Para Lattes, um detalhe sem importância: “Esses prêmios grandiosos não ajudam a ciência”, disse.

Texto de Cesar Lattes na apresentação do CD Quanta, de Gilberto Gil:

“Campinas, 5 de fevereiro de 1997

Prezado Gil,

Agradeço as atenções e remessas. Não tenho conhecimentos musicais que me permitam dar uma apreciação à altura do K7 que você me enviou. Posso dizer que gostei muito, assim como já havia apreciado toda a obra de Gilberto Gil que chegou ao meu conhecimento. Peço apenas que me permita dizer o sentido que a física dá atualmente a algumas palavras que você usou, com muita felicidade, mas que em alguns casos me parecem licença poética: O ‘Infinitésimo’ é uma ficção matemática. Quantum é o mínimo de ação (energia X tempo). O Quantum de Ação é mais real do que a maioria das grandezas físicas: seu valor não depende do movimento em relação ao observador. Tiraria ‘Quark’ que está na moda com ‘cromodinâmica quântica’, mas que só pode aparecer escondido. Não engoli ainda, apesar dos livros modernos e da Enciclopédia Britânica.

Sobre as letras:

Ciência e Arte: Comovido agradeço a atenção. A ciência se insemina subliminarmente. A ciência é uma irmã caçula (talvez bastarda) da arte: Camões pediu ajuda do engenho e da arte – não da ciência. Salomão diz que ‘ciência sem consciência não é senão a ruína da alma’ – a arte, não. Paro por aqui, porque Salomão também diz: ‘Não busques ser demasiado justo nem demasiado sábio: queres te arruinar?’. Para concluir cito um grande arquiteto: ‘Quando a ciência se cala, a arte fala’ (Artigas).

Com um abraço,

Cesar Lattes”

Fonte: Correio Popular - Caderno C (20/03/2005).


 
 
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