Revista
IstoÉ
Gigante
pela própria natureza
Luiz Chagas
Em seu centenário de nascimento, o historiador Sérgio
Buarque de Holanda ganha homenagens e o reconhecimento definitivo
de seu livro Raízes do Brasil.
Imagine uma festa no final dos anos 50, na qual o sambista Nelson
Cavaquinho, com o violão em uma das mãos e um copo
de conhaque barato na outra, tenta atrair a atenção
do sociólogo e futuro presidente Fernando Henrique Cardoso,
que, ao lado do escritor Caio Prado Jr. e do físico Mario
Schenberg, parece querer se confundir com a parede de tão
tímido. Ao contrário do artista plástico
Flávio de Carvalho, que, muito à vontade usando
saia, dança animado com o anfitrião fantasiado de
Nero, na verdade o historiador Sérgio Buarque de Holanda,
cujo nome, originariamente, era com dois eles. Todas
as atenções, no entanto, acabam se voltando para
a Miss Itália, que invade o ambiente envergando blusa transparente
para a alegria masculina. Não, não se trata de um
delírio ou de uma cena extraída de alguma chanchada
da Atlântida ou da Cinédia, mas da descrição
quase fiel de como eram os rega-bofes da rua Buri, 35, no bairro
paulistano do Pacaembu, que durante 30 anos foi endereço
dos Buarque de Hollanda.
Se não tivesse morrido em 1982, o patriarca Sérgio
Buarque de Holanda certamente comandaria a comemoração
de seus 100 anos que completaria na quinta-feira 11. Ao seu lado,
estaria Maria Amélia Alvim Buarque de Hollanda, a Memélia,
sua mulher e companheira desde o Carnaval de 1935, e atualmente
se recuperando de um derrame. Os dois são pais de quatro
cariocas: a cantora Heloísa Maria, nome artístico
Miúcha; o economista Sérgio, conhecido como Sergito;
o advogado Álvaro; e o compositor e cantor Francisco, o
Chico Buarque de Hollanda dos olhos cor de ardósia. E de
três paulistanas: a fotógrafa Maria do Carmo, a Piii,
com três is mesmo; a cantora Ana Maria, para
todos Ana de Holanda; e Maria Cristina, a também cantora
Cristina Buarque. Cada um escolhendo seu ele duplo
ou não, sem uma lógica aparente. Hoje, para muitas
pessoas, Sérgio é apenas o pai do Chico Buarque.
Para outras, contudo, o grande gozador, o bom copo e o ótimo
papo é o fenomenal autor de Raízes do Brasil, organizador
da História geral da civilização brasileira
em 11 volumes e um dos intelectuais gigantes do século
XX no País.
Paulistano,
advogado de formação, Sérgio foi jornalista
e crítico literário antes de estrear nas letras,
em 1936, com Raízes do Brasil, um marco da historiografia
nacional, hoje colocado no mesmo patamar de Casa grande e senzala
(1933), de Gilberto Freyre, e um degrau acima de Formação
do Brasil contemporâneo (1942), de Caio Prado Jr., conforme
avaliação da nata da intelectualidade brasileira.
Para a professora Zilda Iokoi, chefe do departamento de História
da Universidade de São Paulo (USP), a importância
de Raízes reside em, simultaneamente, descartar a apologia
da presença européia e criticar a aplicação
de teorias importadas sobre nossa história, muito em moda
entre a esquerda de então. Amigo de Mário de Andrade
e de Manuel Bandeira, entre outros, Sérgio já escrevia
sobre o espírito modernista antes da divisora Semana de
22. O poeta Haroldo de Campos relembra que o historiador intuiu
a dissidência dentro da chamada Geração de
45 que culminaria com a poesia concreta , cinco anos
antes de seu surgimento em 1956.
Site
Assim como Campos, no momento o meio acadêmico
brasileiro está em polvorosa. Entre os dias 26 e 30 de
agosto, a USP promete promover o seminário Novos caminhos
e fronteiras. E nos dias 9 e 10 de setembro, a Universidade de
Campinas (Unicamp) agita O histórico na literatura e o
literário na história. Entre outras homenagens já
em ação, o site Sérgio Buarque 100
anos (www.unicamp.br/sergiobuarquedeholanda) permite o
acesso a documentos pessoais e a itens da preciosa biblioteca
comprada pela Unicamp em 1983, que deverá estar aberta
ao público na exposição Sem fronteiras, a
partir de 8 de agosto. Um dos destaques é a máquina
de escrever Remington, cedida por Antonio Candido, na qual Raízes
do Brasil ganhou o capricho da datilografia de Maria Amélia,
sempre rigorosa com os filhos. A caçula Cristina, por exemplo,
longe de ser um Einstein na escola, recorda que fazia questão
de entregar o boletim para o pai assinar. Sabia que ele não
veria as notas vermelhas.
Sergito,
o segundo mais velho depois de Miúcha, conta que a lembrança
paterna mais forte é vê-lo lendo ou escrevendo. Talvez
pelas atividades, as festas na casa eram poucas, mas as visitas
frequentes. O diplomata e poeta Vinicius de Moraes estava entre
os habitués. Certa noite quase sentou em cima de Cristina
ainda bebê, aninhada no sofá. Em outra ocasião,
Ana acordou assustada com um vozeirão. Era Dorival Caymmi,
que apareceu de surpresa a convite de João Gilberto
que não foi , à época casado com Miúcha.
Curiosidades como estas foram rememoradas pela família
no filme de Nelson Pereira dos Santos, Raízes do Brasil
uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda,
feito em versões para cinema e televisão. Na fita,
dona Amélia surge rodeada pelos sete filhos, 14 netos e
três bisnetos, almoçando na casa da rua Buri, cuja
pracinha à frente ganhou o nome de Raízes do Brasil.
Pereira
dos Santos também ouviu amigos de Sérgio, entre
eles Antonio Candido e Paulo Vanzolini. O lacônico compositor
de Ronda e Volta por cima disse a ISTOÉ que, se o diretor
quisesse arrumar outros amigos, teria de apelar para uma sessão
espírita. Sérgio Buarque também era assim,
cercado por um misto de brincadeira e seriedade. Na sessão
solene promovida pela Câmara Municipal de São Paulo
em sua homenagem, semana retrasada, Antonio Candido que
prefaciou as edições de Raízes do Brasil
de 1967 e de 1986 encerrou sua participação
com as seguintes palavras: O centenário de Sérgio
Buarque de Holanda eu consigo entender, mas jamais um Sérgio
centenário. Sua postura mental foi sempre a de um jovem.
E quem há de duvidar?
FONTE:
Revista - IstoÉ
- nº1710 - 10/07/2002, pág. 102.
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