Revista
Época
Parabéns
ao patriarca
Laura Greenhalgh
As
glórias e peripécias de um filme que celebra o centenário
de Sérgio Buarque de Holanda, o pai de Chico.
Fez-se uma faxina geral. Apagaram-se marcas do tempo nas paredes.
Móveis ganharam mantas para cobrir imperfeições.
Até a cozinha voltou a funcionar para aquecer as massas
vindas de uma tradicional cantina paulistana. Quando a avó,
os sete filhos, 14 netos e três bisnetos começaram
a chegar ao solar vestido para festa, microfones captaram a algazarra
de crianças e adultos, e flashes violaram flagrantes emocionados
abraços, beijos, risos, mútuas gozações.
Em 6 de abril de 2002, os Buarque de Hollanda voltaram à
casa da Rua Buri, número 35, no bairro do Pacaembu, em
São Paulo. Lá passaram os 25 anos mais felizes em
família. Não por outra razão, lá celebraram
o centenário do patriarca.
Nesta quinta-feira, 11 de julho de 2002, o historiador, crítico
literário, escritor e jornalista Sérgio Buarque
de Holanda completaria 100 anos de vida. Homenagens em torno do
intelectual que assinou uma das obras seminais da cultura brasileira
acontecem pelo país. Mas os familiares se anteciparam à
data, num ritual só presenciado pelas câmeras de
um cineasta, Nelson Pereira dos Santos, com talento e delicadeza
compatíveis com o mestre. Tornaram-se atores a serviço
da saudade. "Parece que o Sérgio vai aparecer no portão",
vibrou Maria Amélia, de 92 anos, ao contemplar o solar
em que morou até 1982, quando se despediu, por força
da viuvez do marido com quem vivera quase meio século.
Foi um feito juntar os descendentes naquele sábado de abril.
Sérgio, ou Papioto para os netos, ou o "pai do Chico"
para o Brasil, certamente se escondeu na perenidade de suas idéias
para espreitar a divertida homenagem.
O encontro e o almoço em família renderam as cenas
mais surpreendentes de um novo longa dirigido por Nelson. Já
em fase de finalização, o filme conta até
o momento com o apoio da prefeitura do Rio de Janeiro e o empenho
das produtoras Regina Filmes e VideoFilmes. Aguardam-se patrocinadores
que coloquem em cartaz um trabalho com todos os ingredientes para
ser uma jóia no gênero documentário.
O filme terá versão de 100 minutos para o cinema
e outra para a TV, dividida em dois episódios. Vai integrar
uma cinematografia de peso. O mesmo diretor de Vidas Secas (1963)
e Memórias do Cárcere (1984) veio a público
em 2000 com um documentário sobre o pernambucano Gilberto
Freyre também comemorativo do centenário
do autor de Casa Grande & Senzala. Agora ele se debruça
sobre a vida do paulistano Sérgio Buarque de Holanda, autor
de Raízes do Brasil e duas dezenas de livros que investigam
o país em suas entranhas.
Não que o diretor queira se especializar em biografias
centenárias, mas é certo que o casamento de cinema
com literatura continua exercendo sobre ele enorme fascínio.
"O projeto deste filme nasceu de uma predisposição
familiar", explica. "E eu atendi a ela, com imenso prazer."
Como sempre ocorreu na família Buarque de Hollanda
o sobrenome original tem dois "l", mas Sérgio
aboliu um de sua assinatura , alguém teve a idéia,
que contagiou mais alguém, que assanhou outros tantos,
e assim o roteiro começou a ser burilado. Esse alguém
inicial foi a cantora Ana de Hollanda, rebento de número
seis da prole concebida por Sérgio e Maria Amélia.
Ana convocou Miúcha, a filha mais velha, que tratou de
atrair os demais irmãos, e todos convenceram a mãe
de que um documentário, a partir da geografia familiar,
seria uma boa maneira de festejar o centenário. A princípio
Maria Amélia resistiu, mas acabou revelando talento invulgar
nas tomadas cinematográficas. Até aposentou a bengala
em que se apóia para passear pelo Rio de Janeiro.
Quem privou da intimidade do historiador sabe que sua produção
rica no conteúdo e rara na forma tem mais
a ver com o cotidiano da vida que com as formalidades da erudição.
Como disse nos anos 20 o poeta Manuel Bandeira, amigo de juventude,
compadre e companheiro de viagem na barca do modernismo, "Sérgio
só não soçobrou no cerebralismo porque caiu
na farra".
No ano passado, Nelson iniciou o ciclo de entrevistas com os familiares,
especialmente com Maria Amélia, dona de memória
extraordinária. Amigos como o escritor Antonio Candido
e o compositor e zoólogo Paulo Vanzolini também
se dispuseram a remexer o baú das lembranças para
vestir um personagem de natureza ambígua: Sérgio
fez um círculo de relações invejável,
porém era avesso à exposição pública.
Leitor voraz, pesquisador obsessivo e escritor disciplinado, preferia
trabalhar em casa e nela receber os amigos - ao lado da mulher,
dos sete filhos e dos agregados que por lá ancorassem.
Uma das maiores dificuldades enfrentadas pela produção
foi descobrir imagens em movimento do professor. "De repente,
eu só tinha o Sérgio estático das fotos",
comenta Nelson. Raridades foram encontradas. Uma delas é
um filme feito por Carlos Augusto Calil, professor de cinema na
USP, na casa da Rua Buri. Sérgio fala do poeta franco-suíço
Blaise Cendrars, um entusiasta dos modernistas, a quem pôde
entrevistar na juventude. Outro achado foram cenas do casamento
de Miúcha com João Gilberto, em 1965, em Nova York.
Feito pelo compositor Luiz Bonfá, convidado da festa, o
filmete esteve desaparecido por anos, até ser localizado
por Walter Sales, que mandou recuperá-lo.
Se a casa da Rua Buri empresta moldura familiar ao filme, um maço
de papéis, guardado pela viúva, garantiu espinha
dorsal ao roteiro. São 17 páginas de um texto datilografado
por ela própria, cujo título é Apontamentos
para a Cronologia de S. "Isso nos foi encomendado por Francisco
de Assis Barbosa (escritor paulista, falecido em 1991), nosso
amigo", conta Maria Amélia. "Chico precisava
das informações para usá-las em nova edição
das obras de Sérgio. Fomos então repassando os fatos
da vida." Mesmo limitado às margens do tempo, o texto
organiza boas reminiscências. "Quem lê os apontamentos
imagina o Sérgio nascido no bairro da Liberdade, o menino
que pegava o bonde 21 para ir ao Colégio São Bento,
o rapazola que desatava a dançar na noite paulistana e
logo circularia com a patota modernista", conta o diretor.
Aos 17 anos, o rapazola em questão, filho de um professor
pernambucano de botânica, publicava a primeira crítica
literária num jornal de São Paulo. Mas foi do Rio,
onde se formou em Direito, que despachou artigos para a revista
Klaxon, a convite de Mário e Oswald de Andrade. Era um
tempo de confronto com os tradicionalistas - e Sérgio se
esbaldou. Chamou o escritor Tristão de Athayde de católico
enrustido, jogou Graça Aranha e Ronald de Carvalho na vala
dos falsos modernistas, ganhou fama de encrenqueiro. "Falar
dele é relembrar uma geração de jovens inquietos,
cultos e com particular senso de humor", comenta Nelson.
O documentário consumiu vasta pesquisa histórica.
Imagens da Rússia pós-revolução de
1917 foram garimpadas para anunciar o período em que o
jovem jornalista, a mando de Assis Chateaubriand, tentou chegar
a Moscou como correspondente de O Jornal. Foi em 1929. Como não
conseguiu entrar no país, parou na Alemanha, onde ficaria
por quase ano e meio. São desse tempo a lendária
entrevista que fez com o escritor Thomas Mann e o romance que
teve com uma alemã que lhe deu um filho Sergio Georg
Ernst , com quem jamais teve contato. Perderam-se os elos
no mundo contaminado pelo nazismo e conflagrado pela guerra.
A
efervescência cultural de Berlim nos anos 20, concomitante
à ascensão do nazismo, mudou a cabeça do
correspondente de Chateaubriand. "Sérgio foi para
a Alemanha ligado ao jornalismo e à crítica literária
e voltou interessado na temática social", explica
Maria Amélia. Lá, ele reforçava o caixa fazendo
legendas em português para filmes entre eles, O Anjo
Azul, de 1930, estrelado por Marlene Dietrich. Canções
eternizadas nesse clássico eram entoadas pelo historiador
em reuniões familiares. No documentário, o público
poderá ouvi-lo em rara performance, graças à
remasterização de uma antiga fita cassete.
O
pai e a mãe de Heloísa, Sérgio, Álvaro,
Francisco, Maria do Carmo, Ana Maria e Maria Cristina se conheceram
no Carnaval carioca dos anos 30. Maria Amélia Alvim, criada
na austeridade de uma tradicional família mineira, ainda
hoje evita comentar o início do romance. Não resiste,
porém, a relembrar o momento em que o namorado a pediu
em casamento. "Rodrigo Mello Franco de Andrade pediu minha
mão, em nome de Sérgio, e Prudente de Moraes Neto
deu informações sobre o noivo. Só poderiam
ter falado bem", diverte-se, ao rever a atuação
dos amigos, dois escritores emergentes, descendentes de famílias
que fundaram a República. Imagens do Outeiro da Glória
lembram a cerimônia, em fins de 1936, meses depois de Sérgio
ter publicado Raízes do Brasil, seu primeiro livro, volume
inaugural da série Documentos Brasileiros, coordenada por
Gilberto Freyre. Maria Amélia chegou a revisar originais
desse "clássico de nascença", segundo
Antonio Candido, no qual o autor ä informa que a missão
do Brasil seria dar ao mundo o "homem cordial". Mal
interpretado, levou anos explicando que "cordial" não
é sinônimo de "benevolente".
O
casamento, a chegada das crianças e a necessidade de garantir-lhes
o sustento definem os contornos da vida nas décadas seguintes.
Entre o ato solitário de escrever e o dia-a-dia marcado
pelo alvoroço da casa, circulam histórias para muitos
filmes. Uma delas dá conta do ar de embevecimento de Vinicius
de Moraes, debruçado sobre o berço de Heloísa,
num apartamento no Leme, primeiro endereço do casal Sérgio
e Maria Amélia. Heloísa, "miúda e mexedeira",
viraria Miúcha. "Vinicius era muito querido",
lembra a cantora. "Poderia ficar um, dois anos sem aparecer.
Mas, ao chegar em nossa casa, decretava-se a festa." Mesmo
quando a família se mudou para a Itália, em 1953,
para Sérgio assumir a cadeira de estudos brasileiros na
Universidade de Roma, os encontros com o poeta prosseguiram.
Entrou
para o folclore doméstico a carta de Francisco, filho do
meio, endereçada à avó, antes da partida:
"Avó, vou para a Itália. Quando eu voltar,
provavelmente a senhora estará morta. Mas não se
preocupe. Eu vou me tornar um cantor de rádio. É
só a senhora ligar o rádio do céu que vai
me escutar". Francisco virou Chico, sobre quem o pai escreveria:
"Meu filho não é tímido. Trata-se de
uma pessoa normal, alegre, sem problemas graves de personalidade.
Eu sei o que estou falando. Sou seu pai há 23 anos".
Sérgio então virou o "pai do Chico". Miúcha
hoje virou "a mãe de Bebel", cantora de êxito
internacional. Chico virou sogro de Carlinhos Brown. Zeca Buarque,
filho de Cristina, virou assistente de direção de
Nelson. As "virações" familiares não
param de acontecer.
"O que me impressiona é como essa prole foi criada.
Para Sérgio se dedicar aos livros, Maria Amélia
garantia a retaguarda familiar. Ele, por sua vez, jamais impôs
erudição em casa. O resultado, todos sabemos: criou
gente de pensamento livre", conclui Nelson. O documentário
esmiúça afeições ao ouvir o que cada
filho tem a dizer do patriarca bonachão, que deixava o
escritório, no andar superior, para acompanhar rodas musicais
improvisadas na sala.
"Cada
um de nós acha que é dono de um pedaço de
papai", admite Miúcha, que registrou parte de seu
depoimento no Jardim Botânico do Rio. Sérgio gravou
na Faculdade de Economia da USP, onde dá aulas, e num bar
da Vila Madalena que costuma freqüentar. Álvaro falou
sobre o pai na Rua Buri. Chico, em sua casa e numa caminhada pelo
Leblon. Maria do Carmo, a Piii, foi ouvida em Olinda, onde mora
e pesquisa arte popular. Ana aproveitou o cenário de um
show para fazer um dos relatos. Cristina, a caçula, aparece
em uma das rodas de samba da qual é mestra. Já dona
Maria Amélia, que encabeça o elenco, guiou as câmeras
pelos endereços em que a família viveu.
Um
deles existe só na imaginação. Trata-se de
uma casa que Oscar Niemeyer projetou para os Buarque de Hollanda,
em 1953. Por falta de dinheiro, ela jamais saiu do papel. "Chegamos
a comprar um terreno em São Paulo para construir a casa
do Oscar", conta Maria Amélia. "Mas não
havia recursos. Vivíamos com o salário de professor
universitário e a família era grande." Juntando
economias, em 1956 o casal pôde comprar a casa da Rua Buri.
O
chalé em estilo normando, próximo ao Estádio
do Pacaembu, atravessou a ditadura de 64 como núcleo de
resistência e agitação cultural. "Aquela
casa era um aparelho", afirma Miúcha. Lá, nos
anos 50, filhos dormiram embalados ao som da máquina de
escrever paterna. E lá se juntariam, em 1982, para velar
o pai, morto por um câncer no pulmão. Homem de esquerda,
dois anos antes assinara a ata de fundação do PT.
Conta-se
que, ao longo de duas décadas e meia, a casa foi sendo
tomada pelos livros. Quando a invasão atingia o limite
do insuportável, Sérgio e Maria Amélia providenciavam
um sebo na varanda, convocando amigos para a desova literária.
O escritório-biblioteca era o melhor cômodo, com
escrivaninha, espreguiçadeira, uma estante móvel
ao centro e prateleiras abarrotadas. "Ele já tinha
5 metros de estante no noivado!", ironiza a mulher. Quando
o marido se enfurnava em reflexões, Maria Amélia
dava passos silentes para trás, à porta do escritório,
para não incomodá-lo. Pouco antes de sua morte,
encontrou-o taciturno no escritório, o olhar perdido no
passado. Chamou-o para dormir. Ele não foi. Queria entender
como os índios guaicurus começaram a andar a cavalo,
tornando-se exímios na montaria. Decifrar o Brasil remoto
talvez tenha sido sua grande paixão.
Escrevia
em blocos de papel, amassava folhas para começar de novo
e só depois de ordenar o pensamento dedilhava a máquina.
As manhãs surpreendiam o refúgio do intelectual
mergulhado no caos. Certo dia, Maria Amélia indignou-se.
"Sérgio, é impossível conviver com sua
desordem. Se você morrer de repente, o que eu faço
com tudo isso?", indagou. "Chame o Antonio Candido",
foi a resposta. Com a morte do historiador, o cúmplice
intelectual foi chamado para orientar a catalogação
do acervo que hoje integra a Biblioteca Sérgio Buarque
de Holanda da Unicamp. A família recorre ao amigo sempre
que se trata de preservar o pensamento sem fronteiras do patriarca.
Quando se discutiam os rumos ainda hesitantes do documentário
afinal, como explicar a obra de uma vida inteira em 100
minutos de cinema? , Antonio Candido foi taxativo. Fez filhos,
netos e realizadores entender que Raízes do Brasil molda
o corpo do país. Mas é em Visão do Paraíso
que se penetra, por fim, na alma brasileira. Neste livro, um conjunto
de 12 textos, Sérgio interpreta "a busca do éden"
que motivou os descobridores e os primeiros colonizadores do Brasil,
no século XVI. Com tais estudos, disputou a cátedra
de História da Civilização Brasileira na
USP. Fez uma defesa de tese tão brilhante que, ao sair
da sala, ensaiou passos de gafieira com os alunos, em animada
coreografia rumo à cantina da faculdade. O cerebralismo,
ali também, curvou-se à farra e ao apreço
pela vida.
FONTE:
Revista Época - nº206
- 08/07/2002, pág. 96 e 97.
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