Revista Continente Multicultural

Visão de Sérgio Buarque
José Mário Pereira


Passados vinte anos de sua morte e cem de seu nascimento, ele continua a me parecer a versão brasileira acabada do homem de gênio.

O que o senhor achou do prefácio de Darcy Ribeiro à edição venezuelana de Casa-grande & Senzala, de Gilberto Freyre?
– Inteligente, mas ele ficou em cima do muro!
Quem assim responde ao interlocutor curioso é Sérgio Buarque de Holanda. O ano é 1977. O cenário, um quarto de hotel na Avenida Atlântica. Há mais duas pessoas ali: D. Maria Amélia, sua mulher, e o historiador Raimundo Faoro. Embora tivesse acabado de chegar do médico, que lhe prescrevera fumar pouco e limitar o álcool a duas doses diárias de whisky, Sérgio está alegre e pleno de mordacidade. Há pontas de cigarro por todos os lados, e em relação à bebida ele já encontrou um modo de burlar a autoridade médica: adotou um copo longo, que enche até a boca, contabilizando, por cada um deles, apenas uma dose.
Sérgio Buarque era assim, irreverente, ágil de pensamento, figura humana absolutamente irresistível. Quem, desavisadamente, o encontrasse a contar uma de suas piadas, jamais desconfiaria estar diante de um dos mais fecundos e originais homens de cultura que o Brasil produziu em toda a sua história. Sérgio foi um scholar sem pedantaria, “o anticafajeste por excelência” na precisa expressão de seu amigo Manuel Bandeira. Esse homem especial, que transpirava erudição, nada tinha, porém, de esnobe ou afetado. Era capaz de falar horas a fio de temas e fatos do Brasil e do mundo com absoluta intimidade. Sabia contar histórias como ninguém, e era impossível não ficar horas a fio escutando-o.
A curiosidade intelectual de Sérgio se espraiou por vários campos da cultura até se fixar na História. Jornalista político, crítico literário afiadíssimo – um dos primeiros, entre nós, a recusar o new criticism americano –, ele fundou com Prudente de Moraes Neto a Estética, uma das principais revistas do modernismo, foi ficcionista singular e cometeu versos que impressionaram leitores exigentes, a ponto de Bandeira incluí-lo em sua Antologia dos poetas bissextos. A alta cultura, no entanto, não o distanciou da vida: boêmio de raça, na juventude era capaz de varar madrugadas em botequins, na companhia de Donga e Pixinguinha, tocando sambas com desembaraço ao piano, segundo conta Gilberto Freyre, seu companheiro de mocidade no Rio.
O encontro com a historiografia alemã, intensificado no período em que lá esteve como correspondente, enviado por Assis Chateaubriand, foi decisivo para o futuro historiador: distante do Brasil, viu-se desafiado a entendê-lo. Quando voltou, trazia na mala um caderno cheio de notas, a gênese de Raízes do Brasil (1936), marco de nossa historiografia, que, passados tantos anos de sua publicação, continua a fecundar novos estudos sobre o país. Na Alemanha, Sérgio fez ponta em cinema, freqüentou um clube de nudismo, assistiu às aulas de Meinecke, entrevistou Thomas Mann (que lhe confirmou a origem brasileira de sua mãe) e leu, leu muito, principalmente Max Weber, de quem foi o primeiro a falar aqui, e cuja obra tornou-se importante ferramenta na confecção de seu Raízes. É bom notar, no entanto, que em Sérgio não havia servilismo intelectual, nada desse fenômeno, tão comum aos nossos homens de cultura, de reverência extremada às matrizes européias. Sérgio – e aí está a sua grandeza – metabolizou, criativamente, tudo que leu, e chegou mesmo a criar um estilo de escrever História.
Toda a obra de Sérgio Buarque é originalíssima. De Raízes do Brasil, com suas iluminações certeiras sobre as peculiaridades de nossa democracia e liberalismo, até o póstumo Capítulos de literatura colonial, organizado por mestre Antonio Candido, e que veio enriquecer, em particular, o entendimento do barroco brasileiro. Minha predileção, no entanto, recai em Visão do paraíso, livro único em nossa historiografia, no qual José Honório Rodrigues via “uma erudição imensa”, e cuja rica temática, desde então, continua inexplorada por nossos historiadores. Trata-se de obra-prima em qualquer língua, mas ainda pouco conhecida, a ponto do historiador espanhol Juan Gil, no caudaloso Mitos y utopías del Descobrimiento (Alianza, 1989) se dar ao luxo de não citá-la.
Quando o encontrei pela última vez, já no final da década de 70, Sérgio usava bengala, estava um tanto cansado, mas seu espírito era o mesmo. Com o seu vozeirão inconfundível, divertiu a todos cantando sua versão em latim de Sassaricando. Fino artesão da língua, homem de um desassombro intelectual sem par, quando o arbítrio tomou conta da Universidade ele se demitiu de sua catédra em protesto, fato assinalado no precioso Blackwell Dictionary of Historians (1988), que lhe dedica um verbete assinado por A. J. R. Russel-Wood, da Johns Hopkins University. Em Sérgio Buarque de Holanda era total a ausência de vaidade ou de inveja. Passados dez anos de sua morte e cem de seu nascimento, ele continua a me parecer a versão bra sileira mais acabada do homem de gênio.

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FONTE: Revista - Continente Multicultural - Edição 19, julho/2002.


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