Revista Continente Multicultural

O crítico
Luiz Carlos Monteiro


Por causa de sua importância como historiador, a atuação de seis décadas de Sérgio Buarque de Holanda como crítico literário ainda é discriminada.


Quando se fala no nome de Sérgio Buarque de Holanda, vem logo à lembrança a sua condição de autor de Raízes do Brasil. São esquecidos com demasiada freqüência, nestas situações corriqueiras do plano da oralidade, outros livros capitais do Sérgio Buarque historiador. E bem mais posta de lado ainda é a sua atuação de seis décadas como crítico literário, agora discriminada também no plano da escrita.
Mas, se nem tudo na obra do escritor paulista gira em torno da historiografia colonial, de modo algum podem ser relegadas suas descobertas e questionamentos acerca de uma faceta socioantropológica fundante do homem brasileiro, quer se concorde com eles ou não. Ou os resultados da busca incansável por fontes de estudo e pesquisa as mais abalizadas e fidedignas de nossas épocas menos documentadas. Com o discurso histórico associado à filologia, conforme propôs Alfredo Bosi, “uma ética imanente ao labor intelectual, um franco amor à verdade dá a esse discurso um gosto de coisa autêntica que faz bem à alma do leitor burlado e iludi do de nossos dias”. Não é ilícito afirmar que a mesma compulsão rigorosa, erudita e de prosa fluente que impulsionava o historiador logra manifestar-se também no crítico literário exímio e exigente que ele foi.
Sérgio Buarque iniciou-se na crítica literária já em 1920, aos dezoito anos. Modernista da primeira rama, conviveu com gente desse movimento em São Paulo: Guilherme e Tácito de Almeida, Sérgio Milliet, Mário e Oswald de Andrade. De 1921 em diante, morando no Rio de Janeiro, estuda Direito e faz dois grandes amigos na faculdade: Afonso Arinos de Melo Franco e Prudente de Morais Neto. Funda com Prudente a revista Estética, em 1924, com título dado por Graça Aranha.
Gilberto Freyre recorda em Vida, forma e cor como tentou e não conseguiu aproximar José Lins do Rego de alguns modernistas do Rio, entre eles Sérgio Buarque, após recomendá-los veementemente à simpatia e à atenção do paraibano: “Simpatia que, da parte dele – José Lins –, dificilmente se fixou em Prudente, Rodrigo, Sérgio e Drummond, embora tivesse imediatamente aderido à poesia e à personalidade de Manuel Bandeira”.
Sua primeira coletânea, Cobra de vidro, somente será publicada em 1944. Na edição mais recente, de 1978, ainda refeita por ele, além dos textos jornalísticos de 1940-41, aparecem outros redigidos até 1952. É notável o texto sobre a poesia de Manuel Bandeira, Trajetória de uma poesia, que se prestou também para a introdução às obras completas do pernambucano. No esboço comparativo entre Bandeira e dois modernistas consagrados, Ronald de Carvalho e Guilherme de Almeida, considerando-se certos processos líricos utilizados pelos três, conclui-se facilmente quem sairá ganhando. Ronald era o “colorista” artificioso, enquanto que a musicalidade até certo ponto “provocada” de Guilherme o imobilizará como numa camisa-de-força. Para o crítico, Bandeira é o poeta quase sem defeitos, aquele que não sacrifica o melhor de sua voz íntima em favor de elementos externos, às vezes falseados e deslocados da poesia. Sérgio faz também elogios rasgados ainda à poesia singular de Dante Milano, pelas temáticas pouco encontráveis em outros poetas e pelo conteúdo essencialmente filosófico de muitos de seus poemas.
Revelam-se ainda exemplares as análises da poesia de Drummond e João Cabral. Do mineiro, questionará a qualificação de primeiro “poeta público” brasileiro, proposta anteriormente por Otto Maria Carpeaux, pensando nos poemas de Sentimento do mundo e na sua suposta ligação, em 1940, com a “moderníssima corrente da poesia inglesa”. Toma como ponto de partida, no caso de Cabral, o ensaio que este escreveu sobre Joan Miró, para melhor avaliar o poeta a partir de suas concepções peculiares sobre a arte do pintor espanhol.
Em artigo recente, Antonio Arnoni Prado, organizador de parte da obra de Sérgio Buarque inédita em livro (O Espírito e a letra, 1996, em dois volumes que somam 1.100 páginas), intenta mostrar como se processa a influência exercida pelo historiador sobre o crítico em termos de argumentação e contextualização de tempo e espaço apreendidas do histórico. A outra parte dessa crítica foi organizada por Antonio Candido em Capítulos de literatura colonial (1991) e no Livro dos prefácios (1996). Candido não esconde a inteireza do elogio a Sérgio, companheiro de longas datas e de interesses políticos, sociológicos e literários em certos instantes convergentes e até comuns: “Como crítico, Sérgio foi um mestre incomparável, talvez o mais importante do Brasil no século 20”. O fato é que Sérgio completou, de algum modo, com sua antologia de poetas e seus estudos sobre a fase colonial, o trabalho crítico de Candido, que principia sua Formação da literatura brasileira com os árcades mineiros. Neste sentido, é sintomática a homenagem feita por Sérgio a Candido no ensaio Gosto arcádico, para o livro Esboço de figura.
Sérgio Buarque tinha um posicionamento claro sobre a função da crítica e dos críticos, enfatizada na “Apresentação” que fez de outro livro que organizou em vida, Tentativas de mitologia (1979). A visão que mostra dos críticos é demolidora, sem esquivar-se contudo de sua própria inclusão nela, ao adiantar que o crítico é um “personagem naturalmente presunçoso, pois que se faz passar, no fundo, por onisciente”. Ele conta ainda detalhadamente, na apresentação, como veiculou-se o seu percurso intelectual no Brasil e na Europa, a sua relação controvertida com os modernistas, o seu afastamento temporário da crítica literária e como foram memoráveis as polêmicas sustentadas com os historiadores Oliveira Viana e Jaime Cortesão.
Neste livro, mais que em Cobra de vidro, os motivos históricos e culturais aparecem em vários textos, tendo como pano de fundo a simples resenha ou a exposição mais ampliada e geralmente polêmica de determinados assuntos. No âmbito da crítica, no artigo Poesia & Positivismo destrona a idéia, defendida pelo filósofo positivista Euríalo Canabrava, de uma poesia que deveria ser escrita para atender a um padrão crítico existente de antemão. Ele vai buscar em T. S. Eliot o termo “autotelismo”, incorporando-o à crítica e utilizando-o nos arremates das argumentações de Euríalo: “Uma crítica que se quer autotélica, supõe necessariamente uma poesia igualmente autotélica, ou seja, dotada de expressão não apenas distinta, porém minuciosamente oposta a todas as demais formas de linguagem, mormente às mais precisas e inequívocas. É curioso acompanhar as várias etapas do desenvolvimento desse pensamento que, a bem dizer, nasceu menos de uma aplicação direta ao estudo da poesia, do que do espírito de sistema, da vontade de organizar um corpo de doutrina crítica absolutamente coerente consigo mesma”. O embate provocou grande repercussão no início dos anos de 1950, pelas páginas do Diário Carioca, com entrevistas e artigos de outros intelectuais de renome, a exemplo de Manuel Bandeira, Augusto Meyer, Otto Maria Carpeaux e Péricles Eugênio da Silva Ramos.
O que pode ajudar na tentativa de definição crítica para Sérgio Buarque é, numa palavra, a argúcia assumida diante do objeto literário interpretado. E isto, principalmente, nas análises de poesia, quando estas aparecem desvinculadas ou isoladas das especificidades latentes e próprias das situações históricas.


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FONTE: Revista - Continente Multicultural - Edição 19, julho/2002.


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