O Globo On Line

Imagens que não precisam de edição

Arnaldo Bloch

O sanitarista Noel Nutels, que também mexia com cinema, dizia que documentários deviam passar sem cortes, sem edição. É esta a sensação que se tem — a despeito do pudor de Nelson Pereira dos Santos — ao assistir aos 40 minutos de depoimentos brutos do seu “Raízes do Brasil / Uma cinebiografia de Sérgio Buarque de Holanda” (Produção Regina Filmes, com Rio Filmes e Vídeo Filmes, e roteiro de Nelson e Miúcha). A pergunta que vem à mente é: para que edição?

Para que, se vemos, na tela, Maria Amélia, a viúva, aos 92 anos, evocar o primeiro encontro com Sérgio na esquina do Jockey Clube, numa noite de carnaval, com esticada no Lido?

Para que edição quando ela recorda uma noitada de uísque com Mario de Andrade (um Chivas que Sérgio trouxera), ou quando descreve o lirismo palavroso de Mario ao sair, embriagado, da casa do casal? Para que edição se Antônio Cândido, em pecado de inconfidência, conta que, em tempos magros, Sérgio estocava os livros novos no quarto da babá para fugir à fiscalização da companheira zelosa? Capaz, lembra Cândido, de guiar um fusca até Assunção para ajudar o marido a pesquisar sossegado um arquivo paraguaio.

Para que edição se Chico Buarque, Rio ao fundo, diz que, na biblioteca, recebeu do pai o bastão, na forma de um dicionário analógico? Para que edição se Chico, grave, clama pelo pai ausente, dizendo que “passear com o pai foi uma coisa que não existia em São Paulo, não existia essa coisa por exemplo do pai, nem pai de fim de semana. (...) não existia fim de semana (...)”. Para que edição se Chico, sério, menciona um certo medo do pai quando chegava e flagrava o futebol na rua? É que Sérgio não gostava de futebol, explica. Para que edição se, depois, com riso solto, Chico fala da expectativa de conhecer a casa em que morariam na Itália, que pensavam ser um palacete, e não era? Para que edição se Chico, digressivo, lembra que foi lá que de fato conheceu o pai, onde o viu fora de casa, ao ar livre, uma “imagem mais arejada e saudável”, como descreve.

E para que edição se a família, reunida na casa da Rua Buri, em São Paulo, ouve uma fita cassete transformada em CD, em que Sérgio canta, no aniversário de 70 anos, “O anjo azul”? Para que edição se, em trio de vozes, é acompanhado de Miúcha e de uma Bebel afinadíssima aos cinco anos, e se depois a família entoa um samba em sua homenagem feito em outro aniversário?

Enfim, para que edição se Bebel Gilberto improvisa canção para a neta de Chico parar de chorar. “Cacá , Cacá/ eu não vou mais chorar/Cacá, Cacá, pára pára de chorar. Quer sentar aqui com a tia Bel ? Pra falar do Pappyotto...”

“Pappyoto” é o “outro papai”: um era o João Gilberto; outro, o avô Sérgio. Assim como Chico, Bebel freqüentou biblioteca e jardim, mas o jardim da casa da Rua Buri. E, ao contrário de Chico, viu um Sérgio muito próximo. Na biblioteca, contava-lhe a história de Adão e Eva. No jardim, os dois brincavam de fábula. Bebel era o lobo. Pappyotto era Chapeuzinho...

Para que edição se Bebel confunde-se em impressões esparsas? “Podia estar sol, ele sempre acendia a luz”; ou: “me falava de Galileu Galilei”...

Para que edição se faz-se, naturalmente, um silêncio, e agora Cacá não chora mais? Quem chora é Bebel. A família aplaude. Na escada, todos uivam: “Úúúúú... Sérgio”. É que era assim que Maria Amélia, Memélia, o chamava, quando chegava em casa. Então, para que edição?


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FONTE: O Globo On Line - Segundo Caderno - 13/07/2002



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