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Sérgio, um jovem eterno

Fernando Henrique Cardoso

Recentemente, li um comentário de Antonio Candido de Mello e Souza a respeito de Sérgio Buarque de Holanda que me pareceu muito pertinente. Dizia: posso entender que se comemore o centenário de Sérgio, mas não imagino Sérgio centenário; sua postura mental sempre foi a de um jovem.

É verdade. Jovem, sábio, alegre e irreverente. Suponho jamais ter passado pela mente de Sérgio Buarque, por exemplo, ser um imortal, integrar a Academia. Era trocista, provocador, até quando examinava teses acadêmicas.

E disso lembro bem. Semana passada, ao arrumar papéis para começar a organizar minha futura vida de ex-presidente, deparei com as anotações de Sérgio Buarque quando me argüiu em concurso de doutoramento, em 1960. Recordei-me, então, de que no exame de outra tese em que a candidata ao título de livre-docente na Universidade de São Paulo fazia uma comparação entre pensadores do Brasil-Império e analisava o “pensamento conservador”, Sérgio indagou:

“Mas Vossa Senhoria acredita que aqueles senhores (os varões pensantes do Império) eram mesmo conservadores? Teriam eles lido Burke? Ou eram, na verdade, como eu penso, apenas atrasados?” A ironia de Sérgio talvez se aplique a alguns políticos e pensadores “progressistas” dos dias de hoje…

O fato é que a obra de Sérgio Buarque de Holanda traz essa marca da irreverência, do apego ao novo, inclusive no método. Compreendia a história como um processo dinâmico, aberto, movido por fluxos e refluxos, para usar a expressão de Vico, que o influenciou. Daí sua preocupação com o que chamava de “pormenores significativos”, com os indícios, por discretos que fossem, de transformação histórica, ou mesmo de disputa entre as forças de conservação e de mudança. Caberia ao historiador estar atento ao que houvesse de promessa ou agouro nas diferentes situações históricas, sobretudo naquelas em que o presente se revelasse “grávido de futuro”. Dizia que as épocas realmente vivas nunca foram “tradicionalistas por deliberação”.

Foi com esse sentimento que Sérgio Buarque escreveu sobre praticamente todos os períodos de maior tensão da história brasileira: adequação dos colonos portugueses aos trópicos, epopéia da exploração do ouro em Minas Gerais, momento da emancipação política, emergência do café, esgotamento da Monarquia.

Tenho uma predileção especial pelo extraordinário painel que Sérgio Buarque produziu do Império, publicado como um volume completo da alentada “História geral da civilização brasileira”.

Não conheço outro livro, nem mesmo o formidável “Um estadista do Império”, de Joaquim Nabuco, ou a obra clássica de Raymundo Faoro, “Os donos do poder”, que tenha interpretado aquela fase da História do Brasil com tamanha atenção a minúcias. Sérgio Buarque analisa não apenas as bases agrário-escravistas da Monarquia, mas o jogo político e, sobretudo, a figura, a ação e o significado de D. Pedro II no exercício do Poder Moderador. Ciente da fragilidade dos partidos, o Imperador se encarregava, ele próprio, da alternância na chefia de Governo. Dissolvia a Câmara e constituía novo gabinete, que nomeava os presidentes de província, “responsáveis” pela eleição. A vitória era necessariamente do Partido do Gabinete. A queda de uma situação conservadora, ou a derrubada de um governo liberal, dependia de manobras do que se dizia na época “opinião pública”, na verdade as personalidades mais influentes junto ao Paço Imperial e capazes, assim, de sensibilizar o monarca.

A trama dos interesses políticos imbricados na estrutura econômica e a interferência nem sempre sutil do Palácio de São Cristóvão são desvendados com a perícia do historiador — até detalhista — e a força interpretativa de um grande pensador. Ninguém até hoje, permito-me repetir, interpretou melhor o Império, nem apresentou quadro mais completo de sua história do que Sérgio Buarque de Holanda.

Isto não quer dizer que seu livro seminal — “Raízes do Brasil” — perca lugar no pódio das obras-primas de nossa história intelectual. Quero ressaltar que seria injusto julgar nosso autor apenas por sua extraordinária obra de quase juventude.

Já sugeri em outras ocasiões, como em prefácio à edição italiana mais recente de “Raízes do Brasil”, que a grande marca desse livro é sua defesa acendrada de uma visão democrática do Brasil e a aposta que faz em uma civilização brasileira guiada pelos valores democráticos, quando na época, os anos 30, a moda era o faciscmo e a esperança, o comunismo.

É certo que Gilberto Freyre não incorreu em qualquer daquelas tendências. Mas seu conservadorismo nacionalista o tornou, até certo ponto, demodé, apesar da inegável modernidade de sua análise. Gilberto foi o primeiro, entre os grandes, a incorporar a “história da vida cotidiana” em sua interpretação do Brasil. E por mais que se possa criticar seu culturalismo, contribuiu, e muito, para, ao exaltar as peculiaridades brasileiras, fazer-nos ver que, diante do Ocidente, somos “outra coisa”, e nem por isso coisa pior. Mostrou que somos uma variante do mundo ocidental marcada pelo pluralismo e pela plasticidade.

Só que o olhar do mestre de Apipucos era de indisfarçável empatia com o legado patriarcal. José Guilherme Merquior via o tradicionalismo de Freyre como um tradicionalismo à inglesa, móvel e ativo, que projetava o futuro como um desdobramento incerto e criativo do passado. Não se cogitava, obviamente, de um retorno à experiência colonial, mas o Brasil teria muito a ganhar com a preservação do ethos lúdico, personalista e culturalmente integrador do patriarcalismo ibérico, ainda que à custa da autonomia e independência da esfera pública. Era o passado balizando o futuro.

Já Sérgio Buarque idealizava o futuro como ruptura com a herança patriarcal. Por mais que reconhecesse ganhos propiciados pela capacidade de acomodação revelada pelo colonizador no contato com o meio e com as populações nativas, a tônica em “Raízes do Brasil” foi mostrar como as “sobrevivências arcaicas” do personalismo, do individualismo infenso a causas coletivas, do familismo e da mentalidade cordial eram contrárias à modernidade, que Sérgio Buarque associava à democracia.

A vulgarização de que foi acometido o conceito de “homem cordial” me faz lembrar das dores de cabeça que já me causaram as interpretações equivocadas da teoria da dependência. Sérgio tomou a expressão de empréstimo a Ribeiro Couto. Ao contrário do defendido por muitos, como Cassiano Ricardo, a cordialidade em tela nada tinha a ver com os ritos de polidez. Na verdade, opunha-se a eles. Se a polidez era definida por normas impessoais, de aplicação geral, a cordialidade tinha o timbre pessoal, dizia respeito ao comportamento ditado pelo coração, a lhaneza no trato, a hospitalidade, mas também a inimizade, o favor. Enfim, identificava-se com os padrões de sociabilidade inerentes à família.

Sérgio Buarque não via como construir um ambiente democrático a partir da informalidade criada pela linguagem da emoção. Sabia que essa informalidade parecia diluir diferenças, reduzir distâncias. Lembra até a festa do Senhor Bom Jesus de Pirapora, em que Cristo desce do altar para sambar com o povo. Só que era exatamente esse apreço pela ausência de normas, alertava Sérgio, que nos afastava da democracia. A diluição de regras somente facultaria espaço àqueles habilitados a utilizar a falta de ordem ou anomia em proveito pessoal. Os “menos iguais” ficariam ao desamparo da lei. Sem o respeito a normas não havia como generalizar situações de igualdade.

Sérgio Buarque via afinidades entre o personalismo do “homem cordial” e as soluções autoritárias. Para aqueles habituados a uma exaltação desmedida dos valores da personalidade, era impensável uma disciplina social baseada no assentimento a regras definidas de comum acordo. A única alternativa aceitável seria a obediência cega a um bem e princípio que se julgasse superior, fosse ele o Santo Ofício ou o déspota de plantão. Naqueles círculos, comentava Sérgio, a vontade de mandar e a disposição para cumprir ordens conviviam lado a lado.

O personalismo tampouco sucumbira ao liberalismo então em voga, que se resumia a um conjunto de preceitos legitimadores de práticas de todo opostas a seu valor de face. O caudilhismo oligárquico ocultava-se na adoção de fórmulas, Constituições e idéias aparentemente racionalizadoras, mas vivenciadas por personagens e enraizadas em situações que apenas mascaravam o particularismo, os interesses localizados, os valores do passado. O aforismo de Bentham (“a maior felicidade para o maior número”) era cotidianamente negado ou transfigurado pela mentalidade cordial.

Mas o que me parece ser o caráter distintivo da contribuição de “Raízes do Brasil” — e aí sim, valorativamente proposto — é o otimismo democrático do último capítulo, que fala da “Nossa Revolução”.

Essa “revolução” não é, no dizer de Sérgio, “um fato que se registrasse num instante preciso”. É um processo. Seu marco mais visível foi a Abolição (e isso liga “Raízes do Brasil” ao livro sobre o Brasil-Império). Seu campo de desdobramento, a cidade. Os personagens em fuga, o agrarismo e o iberismo. O fermento emergente, o “americanismo”. A transição não se estaria dando de forma linear, mas dialética. Por mais que os princípios do patriarcado estivessem corroídos e o estamento aristocrático exaurido, o “aparelhamento político” não havia renovado seu perfil. Parecia oscilar entre o beletrismo liberal e fórmulas mitigadas de fascismo, que pareciam alimentar-se mutuamente (“a história jamais nos deu o exemplo de um movimento social que não contivesse os germes de sua negação”). Intuía, assim, a ameaça integralista.

Mas sugere que a democracia haveria de prevalecer. Para tanto contribuiriam atributos como a inconsistência no Brasil dos preconceitos de raça e de cor, tendências como a urbanização e o cosmopolitismo (a “globalização”?), e o apreço pela autonomia do indivíduo. A garantia maior da democracia, contudo, estaria no ingresso das massas no processo político. O povo seria o protagonista maior dos novos tempos. E atuaria não mediante o expurgo, mas a amalgamação das camadas superiores, em uma “boa e honesta revolução”.

Sérgio buscava no futuro — quem sabe se na utopia — a inspiração para resgatar o movimento do presente. Não se deixava prender pelas ladainhas que poderiam ser entoadas sobre o passado agrário e iberista.

Seria preciso mais para mostrar o quanto Sérgio Buarque de Holanda foi precursor de uma visão (que não a do Paraíso) capaz de levar-nos, de fato, a dar continuidade ao processo de modernização iniciado com a Abolição. Mas talvez já tenhamos recordado o suficiente para indagar: não estaríamos assistindo à vitória dos ideais pregados por Sérgio Buarque sobre as oligarquias, o personalismo caudilhesco e o emocionalismo irracional do “homem cordial”?


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FONTE: O Globo On Line - Segundo Caderno - 13/07/2002



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