O Globo On Line

Sérgio Buarque de Holanda
Autor de 'Raízes do Brasil' deixou uma obra tão rica quanto sua vida


Rachel Bertol

Pensador de idéias graves e um dos mais alegres homens de sua geração. Jornalista, boêmio, crítico literário e historiador profundo, o maior deles, das nossas raízes brasileiras. Sérgio Buarque de Holanda, morto há 20 anos, teria completado 100 anos na última quinta-feira e sua obra, saborosa pelo estilo, legado de escritor, mantém-se um desafio para toda pessoa que se dispuser a entender o Brasil. Neste aniversário, sua memória continua a inspirar a polêmica, em seminários e novos livros, com o leque de fontes para a discussão ampliado pelos textos garimpados, nos últimos anos, em seu extenso arquivo, com muitos inéditos, que continuam a vir à tona.

A viagem pelo arquivo, mantido desde meados dos anos 80 pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), é o encontro com um homem de biografia multifacetada, pai dos sete filhos que teve com Maria Amélia - alguns ilustres, como Miúcha e Chico - e autor de uma obra complexa, na qual o pensamento se desdobra em caminhos inesperados, que causaram muita perplexidade. Até o fim da vida, dr. Sérgio, como era chamado, viu-se obrigado a explicar uma idéia que tivera nos seus 30 e poucos anos, lançada no arrebatador "Raízes do Brasil", de 1936, quando afirmou que o brasileiro é o homem cordial.

"Já refutei essa tese", diria, numa entrevista de 1958 à "Tribuna da Imprensa" que pode ser lida no arquivo. "Hoje eu não usaria essa expressão, porque é ambígua", voltaria a reiterar à "Folha de São Paulo" em 1977. "Nunca disse que o brasileiro é bonzinho. O sujeito pode ser mauzinho e mauzão", brincou ele na conversa. Na segunda edição de "Raízes", em 1947, Sérgio Buarque já acrescentara uma nota, para afastar controvérsias: "A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado". Na sociedade onde vive o homem cordial, diria ele no livro, cada indivíduo "afirma-se ante os seus semelhantes indiferente à lei geral, onde esta lei contrarie suas afinidades emotivas". O homem cordial, generoso e hospitaleiro no trato, é na verdade superficial, apegado às aparências. Abre flanco aos personalismos, segundo ele, um dos fundamentos da sociedade brasileira.

- É um livro muito polêmico, mas os bons livros são polêmicos. É um mérito ser assim depois de tanto tempo. A cada geração, "Raízes do Brasil" faz pensar. Incomoda porque essa noção de cordialidade não é uma essência, mas resulta de um longo processo histórico de mudança. A cordialidade é sobretudo um alerta, não se trata de uma verificação feliz, é algo que precisa ser alterado - afirma a antropóloga Lilia Schwarcz, autora, entre outros, de "As barbas do imperador", sobre d. Pedro II, em que lançou mão de muitas lições aprendidas com o mestre.

Na Unicamp, pode-se consultar a biblioteca de Sérgio Buarque, com 8.513 livros, 600 obras raras, sua rica correspondência, cadernos e blocos de anotações, recortes de jornais, fotografias. O próprio Sérgio, pesquisador acurado que era, iria se sentir radiante diante de acervo tão rico (complementado pelo site www.unicamp.br/siarq/sbh).

O historiador Edgar de Decca, que preside a comissão da Unicamp para a celebração do centenário, estuda há quatro anos uma dissertação de mestrado inédita de Sérgio Buarque, "Elementos formadores da sociedade portuguesa na época dos Descobrimentos", de cerca de 150 páginas, que gostaria de ver publicada. A tese foi defendida em 1958 na Escola Livre de Sociologia de São Paulo. Para prestar o concurso para professor de História da Universidade de São Paulo (USP), no mesmo ano, Sérgio Buarque precisava apresentar títulos acadêmicos (ele era formado em direito). Segundo De Decca, o texto inédito complementa "Visão do paraíso", a tese que o professor apresentou no concurso de admissão na USP e que se tornaria, para muitas pessoas, seu mais belo e importante livro.

- Em "Visão do paraíso", Sérgio Buarque trabalha no plano das mentalidades dos portugueses no tempo dos Descobrimentos. Já em "Elementos", ele estuda o lado mais material dessa cultura, mostra o vazio do interior de Portugal, de forte cultura marítima - conta De Decca.

Modernista de primeira ordem, Sérgio Buarque, aos 20 anos, foi o correspondente da inovadora "Klaxon" no Rio, em 1922. Com Mário de Andrade, manteve uma contínua correspondência, que iria até o fim da vida do autor de "Macunaíma". As cartas trocadas serão publicadas em breve pela Edusp, em livro preparado pelo professor de literatura de Princeton Pedro Meira Monteiro, autor de "A queda do aventureiro", sobre o legado de Sérgio Buarque, e a pesquisadora Vera Neumann. Muitas das cartas encontram-se no arquivo de Campinas.

- Mário de Andrade elegeu Sérgio Buarque como consultor de questões históricas, no tempo de sua pesquisa sobre folclore. É impressionante acompanhar como ele insistia em algumas perguntas a Sérgio, até que ele respondesse - conta Pedro Meira.

Com a modernização do Brasil, acreditava Sérgio Buarque que muitos dos arcaísmos e vícios do país poderiam ser superados. Segundo Antonio Arnoni Prado, organizador do fundamental "O espírito e a letra", que reúne a maior parte das críticas literárias publicadas pelo pensador em jornais, o projeto de Sérgio Buarque para o futuro do Brasil era uma interrogação. Não havia exemplos a ser copiados.

- Sérgio Buarque abriu caminhos para se pensar o Brasil na sua singularidade exótica, excluída, diferente, desigual, errada, mas nossa - declara Arnoni.



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FONTE: O Globo On Line - Segundo Caderno - 13/07/2002



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